Parlendas e cantigas populares são (re)visitadas pela editora Via Lúdica, unindo oralidade, ritmo e muita brasilidade em livros para a infância.
A infância de todo brasileiro é recheada de brincadeiras de roda: cantigas populares, parlendas, jogos de palma, cirandas e tantos outros versos rimados e brincantes. Talvez você se lembre de algumas delas, como Ciranda, cirandinha, Adoleta e Se essa rua fosse minha. Essas brincadeiras, que passam de geração em geração, são permeadas por um universo cheio de oralidade, ritmo, rima, sons e movimentos. Da nostalgia das nossas infâncias para as crianças de hoje, as brincadeiras de roda existem e resistem, constituindo a riqueza da cultura popular brasileira. Esse repertório – tão rico e tão nosso – é retomado pela Editora Via Lúdica em livros para a infância que olham para essas linguagens com carinho e criatividade. É nesse espírito que nascem obras como Corre, Cutia! e Cantigas de Invento, que chegam para os pequenos leitores como forma de resgatar e celebrar esse patrimônio coletivo.
Por que as brincadeiras de roda encantam as crianças?
Cantigas populares, parlendas e versos rimados têm algo em comum: são fáceis de memorizar, trazem ritmo marcado e convidam à participação coletiva. A brincadeira com a linguagem é o fio condutor desses textos que envolvem todos no lúdico.
Quando esses elementos entram nos livros, a experiência ganha novas camadas. Além de registrar a tradição oral, a leitura estimula a interpretação de palavras e imagens, amplia repertórios e convida a criança a ser também criadora. O livro se torna espaço de reconhecimento e reinvenção: a criança (re)encontra brincadeiras de roda, mas também descobre novos sentidos, novas leituras e novos caminhos para brincar com as linguagens literárias.
Corre, Cutia! – a parlenda que virou quadrinhos
Quem nunca brincou de “Corre, cutia, na casa da tia…”? Essa parlenda, presente em tantas infâncias, é o ponto de partida do livro Corre, Cutia!, de Daniel Mallzhen, publicado pela Via Lúdica. Nessa obra, a parlenda – que, se olharmos bem, é um texto mais rítmico do que lógico – ganha uma narrativa linear e muitas camadas por meio da linguagem dos quadrinhos.
A pequena cutia, protagonista da parlenda, corre apressada desde a primeira página. Os animais da floresta motivam e impulsionam a cutia o tempo todo: “Corre, cutia! Corre, cutia!”, repetem em diversos cenários. O pequeno roedor, tal como diz a cantiga, passa pela casa da tia, pelo cipó e pela casa da avó até chegar à “moça bonita do coração”. Pode olhar? Pode!!
Mallzhen costura esses versos de forma a levar os leitores junto da cutia até a surpresa final. Os quadros, balões e onomatopeias recriam o movimento e a musicalidade da parlenda, permitindo que a criança “ouça” a brincadeira enquanto é apresentada a uma nova linguagem: as histórias em quadrinhos. O resultado é encantador: uma experiência que mistura a tradição oral ao universo gráfico das HQs. A cantiga continua ali, nos rodapés das páginas, mas todo o resto é reimaginado, criando um novo cenário para a parlenda.
Cantigas de Invento – reinventando as brincadeiras de roda
Enquanto Corre, Cutia! parte de uma parlenda para criar uma narrativa em quadrinhos, Cantigas de Invento, de Jaqueline Conte (texto) e Luci Sacoleira (ilustrações), traz várias cantigas de roda tradicionais e as reinventa com humor, surpresa e imaginação.
Partindo de cantigas populares como A barata diz que tem e O sapo não lava o pé, essa obra recria as letras, mantendo a métrica e a sonoridade. Essas releituras brincam com a expectativa do leitor: a criança já conhece o ritmo, e começa a cantar mentalmente a cantiga conhecida, mas logo é surpreendida por um texto novo e inusitado. Primeiro vem a identificação; depois, a surpresa. O lúdico das cantigas (re)inventadas toma conta do leitor, com riso aberto e a possibilidade de cantar e criar suas próprias versões.
As ilustrações de Luci Sacoleira acompanham esse espírito brincante: cores vivas, personagens expressivos e o traço bem brasileiro dialoga com a musicalidade dos textos. Assim, Cantigas de Invento não apenas preserva o ritmo das cantigas tradicionais, mas abre espaço para a criatividade e a autoria das crianças. Ao ver que versos podem ser reinventados, o pequeno leitor se sente convidado a criar suas próprias cantigas, a transformar o familiar em novidade.
O lúdico da cultura popular e da leitura
Trazer a cultura popular para os livros infantis vai além da diversão. Esses títulos funcionam como portas para o letramento literário e de mundo, permitindo que a criança leia palavras e imagens, brinque com a linguagem e mantenha viva a cultura popular. As brincadeiras de roda viraram livros e ampliaram as potencialidades da cultura popular e do livro:
- Novas linguagens: em Corre, Cutia!, a criança interpreta expressões, movimentos e símbolos gráficos, ampliando seu repertório leitor por meio da linguagem das histórias em quadrinhos.
- Oralidade e ritmo: ambos os livros reforçam a cadência das brincadeiras populares, seja pela reimaginação das cantigas já conhecidas, seja pela repetição do “refrão” da parlenda.
- Identidade cultural: ao ter contato com parlendas e cantigas de roda, a criança se conecta com tradições que atravessaram gerações, fortalecendo vínculos com sua cultura.
- Criatividade e autoria: as versões inventadas em Cantigas de Invento convidam a criança a ser autora também, criando suas próprias versões de cantigas e outras brincadeiras populares.
Brincadeira que continua girando
Brincadeiras e cantigas populares são criações coletivas: transmitidas oralmente, mudam de geração em geração, de região em região, sempre ganhando novos contornos. Assim também fazem Corre, Cutia! e Cantigas de Invento: preservam a tradição e, ao mesmo tempo, acrescentam novas camadas de leitura. São uma nova versão possível, agora em forma de livro, seja como história em quadrinhos, seja como livro ilustrado.
Ler livros que se inspiram na cultura popular é parte do ato literário; é uma forma de manter vivas as memórias coletivas e de passar adiante tradições e brincadeiras que formam nossa infância. Corre, Cutia! e Cantigas de Invento mostram, cada um à sua maneira, como a tradição oral pode se reinventar no papel.
Essas obras são a garantia para que a roda nunca pare de girar. Na roda da leitura, assim como na roda da brincadeira, todos podem entrar: crianças, jovens, adultos, idosos. O importante é manter o ritmo, repetir o refrão e, sobretudo, brincar. Porque a literatura para a infância, quando dialoga com a cultura popular é, antes de tudo, afeto e celebração.
Luara Almeida é doutora em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e editora da Via Lúdica.